Escrevi este texto no dia seguinte a assistir O Agente Secreto. Foi uma daquelas vezes em que o filme ainda está quente dentro da gente, como quem deixa um copo de vidro na mesa e a marca continua ali, mesmo depois de tirá-lo. Hoje, semanas depois, já vi entrevistas, críticas, debates, mas o que segue aqui é o que me alcançou naquele primeiro impacto, ainda sem opiniões alheias para desviar o meu olhar.

Porque é disso que se trata, daquilo que o filme me fez sentir.

Ontem consegui, enfim, assistir ao novo trabalho de Kleber Mendonça Filho. Esperei três semanas porque queria ir ao São Luiz. Mas as sessões estavam sempre lotadas e acabei me rendendo ao Cinema da Fundação, ali no prédio do museu, pertinho, na Avenida 17 de Agosto. Cheguei ao filme como quem chega a uma rua desconhecida, sem mapa, sem spoiler, só com a vontade de caminhar.

E que caminhada. As quase três horas passaram como quem dá um mergulho longo, desses que quase faltam o ar, mas a gente não quer subir. O Recife dos anos 70 apareceu diante de mim com aquela luz amarelada, os prédios, as pontes, as ruas estreitas, os carros antigos que parecem ter guardado o barulho das décadas dentro do motor.

Foi uma cena específica, porém, que me abriu um alçapão dentro da memória. Quando eles estão num apartamento em cima do Cinema São Luiz. Bastou a janela aparecer atrás do protagonista Marcelo (Armando) para que alguma coisa em mim se mexesse. Não foi nem a imagem, foi o som.

O som que entrou por aquela janela.

Na minha infância, tudo acontecia no centro. Comprar roupa no fim do ano, resolver algo no banco, ir ao parque, ao cinema. Não sei ao certo qual foi meu primeiro filme, talvez Tartarugas Ninja, no Cine Veneza (quando passei mais tempo escorregando na rampa em frente à tela do que vendo a história) ou talvez Peter Pan, no São Luiz, aquele com Robin Williams. Ao sair pela porta lateral do cinema, meu pai me comprou um caqui (a primeira vez que comi essa fruta), tudo por causa de um detalhe do filme que ele achou graça de repetir.

Na adolescência, quando comecei a ir com os amigos comprar roupas na Milles, namorar os discos e fitas na loja Vinil e na B-Side, comer no beco da fome.

O centro era o mundo.
E o mundo tinha som.

Foi esse som que entrou pela janela do filme. O som do freio dos ônibus, a sinfonia desengonçada do trânsito, vendedores chamando, gente passando apressada, carros se amontoando num fio de movimento. Ouvi aquilo e voltei para o banco do ônibus na Guararapes, comprando pipoca pela janela antes de ir pra casa.

O danado é que o centro ainda está lá, ônibus, carros, ambulantes, mas não é mais o centro daqueles acontecimentos todos. Falta-lhe o miolo pulsante, a vibração que fazia com que até o vento tivesse cheiro de história.

Heleno, meu avô, trabalhou na recém-chegada fábrica da Coca-Cola na Rua da Aurora nos anos 40. Contava das jornadas longas, tão longas, que às vezes passava a noite entre caixotes nos galpões da fábrica porque não compensava voltar pra casa. Depois seguiu por trinta anos ininterruptos como funcionário da loja Viana Leal, onde minha mãe, Conceição, também trabalhou e onde, ali entre balcões e conversas de fim de expediente, conheceu Valter, meu pai.

Talvez por isso as obras de Kleber mexam tanto com a gente. Não é só cinema, é o espelho torto das nossas próprias lembranças. É como se ele filmasse a cidade de um jeito que devolve o que vivemos e também o que deixamos de viver.

Saí do cinema com um agradecimento atravessado no peito.

Obrigado por mais essa, Kleber.
E obrigado àquela janela, que deixou entrar o som do meu passado.

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